A Ascensão Para O Cadafalso Do Jornalismo

 “Ir a óbito” é uma expressão que sempre me intrigou. A primeira vez que a ouvi foi no Hospital das Clínicas da suposta melhor Universidade do país. Foi usada por um médico para dizer ao meu pai que uma pessoa falecera. Do alto dos meus 16 anos, não me contive e perguntei: “mas ele foi a óbito correndo ou foi lutando?” O professor médico olhou-me estupefato. Meu pai disse para eu ficar quieto, lembrou-me que não se brinca com  isso e, depois que o colega se afastou, deu-me uma interminável bronca. Não adiantou. Desde então, sempre que ouço o “foi a óbito”, pergunto-me mentalmente: foi correndo ou foi lutando?

Há algumas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o jornalista é corresponsável pelas falas de qualquer fonte citada, sendo passível de processo pelas palavras de terceiros (mesmo quando for citação direta de fonte citada pelo nome). Caberá ao Judiciário decidir se o repórter sabia que se tratava de deslavada mentira ou não.

Que isso se trata de uma forma de censura prévia “preventiva”, não tenho dúvida. Pode não ser esse o nome jurídico que suas excelências deram à decisão, mas não precisa ser um Montesquieu para compreender o espírito da coisa. Trata-se do pior tipo de censura: aquela que provoca o medo de se expressar. Muitos jornalistas destacaram esse ponto, com a ressalva de que talvez os ministros do STF não tenham compreendido as consequências de sua sentença. A questão parece ser: a liberdade de imprensa foi a óbito levada pelas mãos dos ministros ou de moto próprio?

Parece que já há movimentação para tentar rever juridicamente a medida. Vão trazer do óbito a liberdade de imprensa, imagino. Mas o drama que alguns comentaristas fizeram pareceu-me uma forma de espiar a culpa por omissões passadas. Pois, em sua maioria, os mais histriônicos na choradeira foram os que apoiaram a censura. Pareciam desejar vingança àqueles que lhes ofenderam nas redes sociais. 
Eu compreendo o sentimento de quem foi ofendido, mas a diferença entre o jornalista profissional e o amador de rede social é que o jornalista é pago para usar o cérebro, enquanto o outro reage apenas com o fígado. Jornalistas que apoiaram a censura nas redes foram guiados pela raiva ou por algum outro interesse que não o da busca da verdade. Quando o princípio se confunde com o interesse, o primeiro desaparece e o segundo fica mais barato, por excesso de oferta.

Ao reagir assim, muitos analistas políticos não perceberam que essa decisão é uma espécie de reconhecimento tácito, pelo STF, da falência da Justiça. Afinal, se esta fosse rápida e eficaz, todos que fossem caluniados poderiam simplesmente recorrer aos tribunais. Jornalistas ofendidos poderiam usar o poder judiciário para exigir reparação e o fim das ofensas. Infelizmente, parece que raramente a Justiça é célere nesses casos. E nem todo mundo pode conseguir um embargo auricular nas instâncias superiores. Assim, a solução simples (e errada) parece ter sido recorrer à censura prévia que não ousa dizer o seu nome. Mas os jornalistas estão muito preocupados com si mesmos para debater essa questão.

Para além dessas preocupações pessoais, houve quem se aproveitasse da confusão para apoiar a decisão e clamar por mais censura. São os assessores de imprensa travestidos de jornalistas. As ditaduras brasileiras (o Estado Novo é sempre esquecido em prol de sua colega mais nova, a “gloriosa”) criaram o jornalista a favor do governo. Fosse por convicção ideológica, necessidade de alimentar a família ou falta de caráter mesmo, sempre houve quem se pusesse a serviço do governo.

O pior efeito da última ditadura no jornalismo foi criar o cacoete do maniqueísmo “direita ruim x esquerda boa”, que se multiplicou ao infinito nas redes sociais. Isto para não falar de jovens saudosistas, que parecem desejar uma ditadura para serem mocinhos de filme. Aparentemente, isto forjou uma cultura nas redações de “defender o lado certo”, mesmo depois do Mensalão, Petrolão etc. A complexidade do mundo passa longe das atuais redações. E, como em sociedade a cada ação corresponde uma reação, neste século vimos surgir o movimento oposto, o dos “liberais” que defendem ditaduras. Estes dividem tudo em “direita boa x esquerda ruim”. Até Hitler já foi considerado de “esquerda” por essa gente! Que jornalistas se comportem assim, é triste e diz muito sobre as faculdades de comunicação.

Para completar a tragédia, a onipresença das redes sociais fez surgir o jornalista que joga para a torcida. O medo de ser “cancelado” fez surgir até eufemismos. O último que vi foi uma comentarista chamar de “ação não-pacifista” (sic) a ameaça do ditador venezuelano de invadir a Guiana (que muitos repórteres pronunciam como se dissessem “Guilherme”). Nessas horas, confundir pacífico com pacifista é o menor dos problemas.

Tudo isso, mais o corte  de custos nas empresas de comunicação, a falta de cultura geral, a confusão mental entre ser assessor de imprensa do partido ou  jornalista etc. parece estar lentamente matando a credibilidade da imprensa e, assim, destruindo o que costumávamos chamar de imprensa livre (dos governos, dos partidarismos, do bom-mocismo etc.). Restará a questão: esse jornalismo foi a óbito correndo ou foi lutando?

São Paulo, 06/12/2023 a 02/01/2024

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