O Poder Civilizatório Do Capitalismo

O leitor já entrou em alguma lanchonete de rede famosa de fast-food? O atendente sempre lhe diz “bom dia/ boa tarde/ boa noite; o que o senhor deseja? Temos estes especiais… Aqui está o seu pedido. Tenha um bom dia / uma boa tarde/ uma boa noite”. Mesmo que seja de madrugada, com a loja fechando, com os funcionários cansados etc. o comportamento será o mesmo. Sim, eu sei, às vezes o imprevisível acontece, como uma briga de atendentes, por exemplo. Por mais treinamento que exista, há sempre o fator humano. Para todo o resto, há máquinas e computação. Daí ser atribuída a Stálin, aquele famoso conhecedor da natureza humana, a seguinte frase: “Onde há uma pessoa, há um problema. Se não há pessoas, não há problemas.” Sim, é uma ironia (aviso necessário, nestes tempos de leitores moralmente superiores e cognitivamente… Bom, vocês entenderam). Quando ministro o curso de Administração na suposta melhor Universidade da América Latina (sorriso maroto), sempre faço essa piada. Para minha tristeza, cada vez menos alunos riem ou, pior, entendem a ironia. Parece que, cada vez mais, o ensino secundário forma cidadãos críticos que ignoram a história do século XX. Criticar sem conhecer é arrogância. Se isso é cidadania, não me espanta que estejamos voltando aos tempos romanos de política como pão & circo.


Por certo, sempre há os bons alunos. E não, não direi “o que seria de mim sem eles?”, porque isto seria a antítese de ser professor. O bom aluno não precisa de um bom professor. Estou lá para os outros, para lhes ensinar quem foi Stálin, o que é ironia etc. Apenas lamento que isto seja feito no ensino universitário, em um curso com 10 candidatos para uma vaga. 


Nessa disciplina, sempre lembro aos alunos que administrar é gerenciar pessoas. Selecionar, treinar, manter e cuidar são a essência do trabalho gerencial. O resto é fácil de aprender (e de ensinar). Uma das vantagens do bom treinamento é que o sujeito aprende para a vida toda, tornando-o uma pessoa melhor ou, na pior das hipóteses, um canalha esclarecido.


Nos tempos que correm, além de me deparar com os tais “cidadãos críticos”, às vezes encontro pessoas que não aprenderam bons modos. Aqueles que se recusam a expressar as palavras “bom dia/tarde/noite, por favor, com licença e obrigado”. Não culpo os pais ou professores. Eu mesmo demorei tanto a aprender isso que minha mãe, sempre espirituosa, dizia-me: “ao menos finja que é educado, porque seu pai e eu tentamos”.


Como exemplo de treinamento, sempre dou o exemplo da cadeia de fast-food, imitando o atendente com o “bom dia/ boa tarde/ boa noite”. Certa vez, uma aluna reclamou, dizendo que o exemplo seria ruim: “Mas ele não fala com sentimento!” Os alunos que participam são o sal das aulas.


Respondi à aluna lembrando que "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude” (ignoro quem o disse e não fingirei falsa cultura, dando uma googlada, o leitor que me perdoe). Mas resolvi alterar o exemplo, colocando um pouco de “sentimento”. Pedi à moça que se imaginasse com suas amigas, ligeiramente embriagadas, entrando na loja de madrugada, quase na hora fechar. Com sentimento, o atendente aos berros diria: “o que vocês estão fazendo aqui?! O que vocês querem, suas bêbadas chatas?” A boa aluna e o resto da classe entenderam o exemplo. O que seria melhor: a boa educação hipócrita dos atendimentos padronizados ou a grosseria sincera? Para completar, citei Cazuza: “mentiras sinceras me interessam”. Infelizmente, para as novas gerações, Cazuza já é tão ignorado quanto Stálin. Mais uma vez, expliquei de quem se tratava. Ignoro se, naquela semana, houve aumento de buscas por “Barão Vermelho” no Google.


Batizei a isso de “o processo civilizatório do capitalismo”. As empresas treinam seus funcionários para serem educados não por que se importam com seus clientes, mas porque se preocupam com seus lucros. “Não é amor, é dinheiro”, como sempre digo, para desgosto de alguns alunos nas aulas de marketing. Mas o fato é que esse treinamento funciona, as pessoas se tornam mais educadas e continuam assim, mesmo quando mudam de emprego. E um mundo com boa educação é melhor, acreditem.


Sim, eu sei: isto se chama a “mcdonaldização do mundo”, com todos esses gestos e palavras treinadas, com todos os horários controlados, com a robotização do mundo. É o processo de alienação do trabalho. No capitalismo, tudo se tornaria mercadoria, escreveu o barbudinho da Renânia. Ou, como um cronista brasileiro escreveu, “o dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro”. 


Mas não sejamos cínicos. Ao contrário do que imaginavam os marxistas pioneiros e ainda o fazem alguns economistas neoclássicos, economia não é tudo nesta vida (o economicismo é a doença infantil do economista). A cultura e as características individuais também contam, bem como as situações nas quais nos encontramos. “O homem é ele e suas circunstâncias”, parafraseando Ortega Y Gasset. As pessoas têm ideais, crenças e até times de futebol pelos quais são capazes de morrer (e matar, infelizmente).


Desde o século passado, qualquer profissional de marketing sabe disso. Um produto de sucesso deve fazer parte do “estilo de vida” de um consumidor. Quando isto acontece, o consumidor passa a ter uma relação afetiva e, até, antropomórfica com o produto (ah, o fetichismo da mercadoria...). Em palavras simples e diretas: o consumidor não tem razão para viver sem o produto (obviamente, ninguém se suicida ao chegar em casa e descobrir que não há uma coquinha gelada lhe esperando na geladeira, mas não resisto a uma hipérbole).


As empresas gastam fortunas para atingir esse ponto. Mas, lembremos, o ser humano não é apenas consumidor. Às vezes, um produto é anunciado de uma forma que se choca com as outras crenças da pessoa. Neste caso, provavelmente, a pessoa abandonará o consumo do produto. Se ficar muito, muito, mas muito ofendida mesmo com a empresa, com uma propaganda, um vendedor inconveniente ou sabe-se lá o quê, passará a odiar o produto e a fazer campanha contra esse produto. Isso é antigo, Galbraith já havia mostrado isso em 1952. A novidade é a internet, claro. Montar um boicote era muito difícil, antigamente. Havia, sempre, a necessidade de algum tipo de tragédia, seguida de uma cobertura massiva da imprensa, para que uma empresa ou produto sofresse esse ódio que leva ao boicote (o caso do Ford Pinto era sempre lembrado nos manuais antigos de marketing).


E aqui chegamos à guerra na Ucrânia: políticos e empresas foram surpreendidos pela reação das pessoas em vários países (notadamente, nas nações democráticas). Provavelmente, até o governo russo se assustou. Todos adoramos a paz. Se perguntados em qualquer pesquisa, diremos que desprezamos a guerra, que violência é o recurso dos sem argumentos etc. Também odiamos a injustiça, a pobreza etc. Estas são as respostas socialmente aceitas, como ensina qualquer bom livro de sociologia. Porém, em algumas situações, a maioria das pessoas aceita algum tipo de violência. Seja em legítima defesa, seja por outro motivo, que depende da cultura, religião, educação etc. A invasão russa  da Ucrânia ultrapassou esse limite para a maioria de nós no mundo Ocidental (e, suspeito, no Oriental também). A internet acelerou a divulgação de notícias sobre mortes e destruições. Quem ficaria indiferente a isso? Daí para os protestos virtuais, foi um pulo em vários países. Não por acaso, a China controla com mão de ferro a rede digital.  Os acontecimentos da Praça Celestial e a Primavera Árabe ainda estão frescos nas memórias dos autocratas espalhados pelo mundo. Curiosamente, o presidente russo Vladimir Putin não tomou esse cuidado no começo da invasão.


Não dá para mensurar sentimentos (os marqueteiros que me desculpem. Os economistas já discutiram isso no século XIX) ou os humores da massa (o tal zeitgeist), mas a maioria das pessoas está revoltada contra essa guerra.  Infelizmente, a história recente também já é esquecida nas escolas. Basta  conhecer um pouco sobre a II Guerra Mundial, ou a famosa frase do General Sherman (“A guerra é um inferno”, proferida em Atlanta, na Guerra Civil Americana) para saber que a guerra moderna é um morticínio também para os civis. 


Políticos que tentaram defender a Rússia por motivos pavlovianos (o cachorro que saliva quando a luz acende) tiveram de dar meia volta. Apoiadores entusiasmados de Vladimir Putin tentam agora dizer que não foi bem assim. Sim, sempre haverá os contrários empedernidos. Essa é uma das belezas da humanidade: não pensamos todos da mesma forma. Há que se respeitar isso. Poderemos sempre suspeitar dos motivos, dos venais aos cognitivos, passando por aqueles que até ignoramos.


Que isto tenha sido uma surpresa para políticos e alguns jornalistas é um mistério para mim. Concluo que essa gente vive em um mundo à parte e que os sistemas eleitorais não são perfeitos (os representantes nem sempre pensam como os representados).


A parte realmente nova nessa história foi a pressão de consumidores de todo o mundo para que suas marcas favoritas parassem de fazer negócios na Rússia. Talvez alguns executivos tenham tomado a decisão de encerrar suas filiais russas por motivos morais. Sempre há os que fazem a coisa certa por convicção. Mas suspeito que a maioria seguiu a máxima: “não é amor, é dinheiro”. Se assim não fosse, há muito as ditaduras petrolíferas já teriam sumido do mapa. Além disso, fortaleza moral não costuma ser unanimidade nos conselhos de administração das empresas (vejam casos como Enron, Teranos, Petrolão etc.). Com a ubiquidade das redes sociais, as marcas famosas não podem correr o risco de um boicote em escala mundial. A conta é simples: comparar o tamanho do mercado russo com o tamanho dos mercados onde acontece o boicote. Não há Putin que possa lidar com isso. Como escreveu Puzo: “não é pessoal, são negócios” (hmmm, acho que foi daí que tirei “não é amor, é dinheiro”. Os bons livros sempre ficam escondidos no inconsciente).


O que tornou a situação dos governos ainda mais complicada. Velocidade não costuma ser uma característica da ação estatal. A virada do século mostrou o impacto do mundo digital na vida das pessoas. As empresas se adaptaram mais rápido, pois não podem imprimir dinheiro para esconder suas ineficiências. Em uma situação de crise, a diferença fica ainda maior. Não se trata de exigir que um governo seja uma empresa: não é e não deve ser. Mas daí a ignorar o mundo lá fora já é um pouco demais. No mundo ocidental, a burocracia estatal tornou-se uma Hidra de Lerna administrativa. Gostem ou não as corporações, as OMGs (Organizações Meio Governamentais) e os sindicatos de funcionários, os cidadãos têm o direito de exigir uma modernização do serviço público. Acredito que a segunda metade deste século será a época da total digitalização do Estado. Boa sorte aos barnabés que estiverem vivos nessa época.


Os boicotes de consumidores serão suficientes para encerrar a guerra? Desconfio que não. Os autocratas não são conhecidos por reagir aos apelos populares. O sacrifício alheio, inclusive dos seus, não comove essa gente. E o mundo não é só economia. Há outras motivações, como parece ser o caso do presidente russo. Mas Putin deveria lembrar-se daquele grande estrategista militar, Mike Tyson: “todo mundo tem um plano até levar um murro na cara”. Seja lá qual fosse o seu plano original, este não funcionou. A resistência ucraniana é heroica, o exército vermelho não faz jus à fama e cidadãos de todo o mundo tentam ajudar a Ucrânia. Dizem que a política é a arte de deixar a porta aberta. Imagino que vários diplomatas estão abrindo essa porta no momento em que escrevo. Se Putin for mesmo tão inteligente quanto seus acólitos dizem, sairá da Ucrânia por essa porta e tentará convencer os seus compatriotas de que isso foi uma grande vitória. Dos políticos ocidentais que o apoiaram, cuidaremos nós nas próximas eleições.


São  Paulo, 14 de março de 2022.


A quem possa interessar:

BABIAK, P. & HARE, R.D. (2006): Snakes in Suits: When Psychopaths Go to Work. New York: Harper, 2007.

GALBRAITH, J.K. (1952): Capitalismo Americano: O Conceito do Poder Compensatório. São Paulo: Novo Século, 2008.

KRUGMAN, P. (1996): A Country Is Not A Company. Boston: Harvard Business Press, 2009.

ORTEGA Y GASSET, J. (1904): Meditaciones del Quijote.

PUZO, Mario (1969): O Poderoso Chefão. Rio de Janeiro: Record, 2012.

SKOUSEN, M. (2001): The Making of Modern Economics. Armonk, NY: M.E.Sharp, 2001.


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