As Instituições De Schrödinger Estão Funcionando

Se Galileu fosse brasileiro, talvez dissesse: “e no entanto, se move”. Um tema recorrente em ciência social (e a economia é uma dessas) é a disputa entre o atraso e o progresso. O Brasil é um exemplo vivo dessa luta. 

Observemos a crônica esportiva nacional. Calma, esta não é mais uma das minhas diatribes contra o jornalismo esportivo, tão comuns neste blog, como sabem meu parcos leitores. Apenas usarei um exemplo caricato para mostrar o nosso avanço. Quando perdemos a Copa de 82, o choque foi enorme. Era-nos inconcebível que aquela seleção não se sagrasse campeã. Com raras exceções, a crônica da época registra a seleção italiana como um time menor. Mas bastaria recordar a seleção italiana de 78, que foi o início desse grande time e perceberíamos que não foi mero acaso a nossa derrota. Quando a Alemanha nos derrotou em 2014, a maior parte da imprensa brasileira reconheceu o valor e o brilho dos alemães. O avanço da imprensa é notório: finalmente percebemos que, no futebol, o outro time também existe. Não como uma amolação até a nossa vitória final, mas como um conjunto de pessoas dotadas de vontade de vencer. Isto é sinal de maturidade. Aliás, dizem que o esporte é um treino para a vida: não dá para vencer todas. 

Qualquer atividade humana que demande interação entre duas ou mais pessoas torna-se um jogo de vontades, por assim dizer (daí a aplicação de teoria dos jogos em política, economia ou guerra). Na maioria dos casos, as convenções sociais definem as regras de interação. Em sociologia, chamamos essas regras de “instituições”. Estas podem ser formais (o código penal, por exemplo) ou informais (as normas de boa educação, como dizer: bom dia, boa tarde, por favor, obrigado etc.). 

Daí a importância de compreendermos a cultura local ao analisar o comportamento: é a cultura que define as regras informais de comportamento. Observar apenas as regras formais pode ser suficiente do mundo ideal do direito, mas não serão o bastante para compreender o funcionamento de uma sociedade. Quanto mais homogêneo for um grupo social em termos de regras informais, mais previsível será o comportamento das pessoas nesse lugar. Sabendo as regras de interação e os objetivos das pessoas, supostamente seria possível criar um modelo matemático para estimar as probabilidades de cada pessoa obter o seu objetivo. Supostamente?

Talvez seja possível prever os resultados em situações muito simples da vida. Mas há um ponto que não podemos esquecer: o tempo. A ordem em que as pessoas agem. Quem cumprimenta primeiro, que faz o primeiro lance, quem recorre à Justiça etc. A ordem das ações influencia o resultado dessas interações, pois as pessoas usam essas informações para revaliar suas ações passadas e planejar as futuras. Incluamos agora o fato de que a capacidade de raciocínio não é uniforme em qualquer população. Além disso, há outras questões: as pessoas são estranhas umas às outras, esta será sua única intereação ou haverá novos encontros e outras interações? Tendemos a nos comportar de forma diferente, quando sabemos que encontraremos de forma recorrente as mesmas pessoas. Lembrem-se: é fácil amar um bilhão de chineses. Difícil é gostar do vizinho (meu falecido pai dizia isso, mas parece que a frase é de Nelson Rodrigues). Prever o futuro é mais difícil do que parece. Mas a chave, tudo indica, são as regras do jogo e a distribuição das capacidades cognitivas das pessoas.

Todas essas regras, essas “instituições”, desenvolveram-se ao longo do tempo. Parece que todo agrupamento humano tende naturalmente a criar regras de comportamento. Se estas são justas ou civilizadas, é outra questão. Mas também parece que essas regras surgem, modificam-se e até desaparecem ao longo do tempo. Um sociólogo diria: instituição social sem função tende a desparecer. Isto significa que a função das instituições também podem mudar ao longo do tempo. Quantos trabalhadores citadinos ainda usam chapéu? E o hábito de tirar o chapéu em local fechado? Hoje, o boné é muitas vezes usado para esconder uma calvície e é usado sempre, até dentro de sala de aula. Será falta de educação?

Daí a expressão “as instituições estão funcionando” ser desprovida sentido. Toda instituição humana contemporânea está funcionando, seja aqui, em Bagdá ou na Nova Guiné. A questão é: como estão funcionando e, mais importante, para quem? Como dizia Marx: o primeiro dever do analista é perguntar “a quem interessa?” (em latim é mais vistoso: cui bono?).

A vida mais recente da expressão remonta, creio, ao mensalão: o primeiro escândalo dos governos petistas. Vários analistas políticos nos garantiram que as instiuições estavam funcionando, pois houve investigação e condenações na justiça. Depois, houve o petrolão e o impeachment: novamente, “as instituições funcionaram”. Funcionaram?

Vamos observar mais de perto as “instituições”: a oposição demonstrou ser oposicinha, pois provavelmente era caso de impeachment. Parte da imprensa (o tal “quarto poder”) adotou a novilíngua petista: dinheiro não contabilizado, mal feitos etc. Orwell tem um ensaio maravilhoso sobre como a política provoca a corrupção da linguagem. Que políticos o façam é parte do jogo. Que jornalistas adotem isso é esquecer os fatos para tornar-se relações públicas. O Senado, vetusta instituição, aprova sempre a toque de caixa ministros do Supremo, mesmo aqueles reprovados duas vezes em concurso para juiz e ex-advogados de partido. A república do acaju, afinal, também é uma instituição. A cláusula que determina cassação e perda de direitos políticos foi ignorada e a ex-presidente pode ser candidata ao Senado. As instituições, vocês já perceberam, funcionaram. A questão é: funcionaram para quem?

Uma vez que as regras formais e as informais são distorcidas, o que impediria outro grupo político de fazer o mesmo? Seriam as tais “instituições”? As últimas eleições revelaram uma massa de gente que não se sente representada por essas “instituições”. Outro grupo político subiu ao poder. O que se seguiu é o que vemos hoje: uma depredação das instituições formais de Estado. Mas voltemos à questão do tempo: a ordem das ações afeta o comportamento dos agentes envolvidos no jogo. Pois, em paralelo com a disputa eleitoral, várias pessoas em posições-chave perceberam que era preciso reformar algumas regras. Daí temos o fundo eleitoral (pois “democracia custa caro”) e o aumento do poder das direções partidárias. Isto limitou o acesso de candidatos que não sigam a cartilha das tais instituições, que funcionaram para manter o poder nas direções dos partidos.  Parece que o problema não era o financiamento privado de campanha, afinal (para resolver isto, seria mais fácil tornar público todas as doações e proibir que uma empresa ou pessoa doassem a mais de um partido).

Ao historicamente aceitarmos que as regras do jogo sejam distorcidas para favorecer um ou outro grupo, criamos as “instituições de Schrödinger”: funcionam e não funcionam. A regra vale de acordo com o interesse momentâneo de quem comanda a instituição. Um país que convive com a máxima “aos amigos, tudo; aos inimigos a lei” poderia esperar algo diferente?

O que mudou nesses anos foi a difusão da informação. Não dá mais para disfarçar os nossos problemas politicos com “as instituições estão funcionado” ou “o Congresso é a cara do povo”. E o quarto poder, como todo poder, também corrompeu-se. Daí o desespero em regular as redes sociais. A quem interessa? Ah, mas e as fake news, as mentiras, os boatos? A resposta está no tempo: há um aprendizado natural, para que o joio seja separado do trigo. Ou alguém imagina que a humanidade já surgiu construindo naves espaciais? Sim, eu sei que “a longo prazo, estaremos todos mortos”. Infelizmente, todos os experimentos para acelerar a maturidade e criar novas sociedades perfeitas fracassaram. Natura non facit saltus (a natureza não dá saltos). Mas uma lição já deveria ter sido aprendida: censura não é solução. Que jornalistas cogitem apoiar isso diz muito sobre o estado atual da profissão. Parece que o hábito da autocrítica não frequenta as redações.

Tudo isso demonstra a falência de nossas instituições formais. Aquelas, que “estão funcionando” (mas não estão). Reformá-las levará tempo, dinheiro e, o mais importante, vidas. Ditaduras e golpes não são uma opção válida ou civilizada. Ao final do governo Collor, houve um quase consenso de que a inflação era o nosso maior problema (o partido das corporações estatais votou contra o Plano Real, é sempre bom lembrar). Em algum momento, perceberemos que o nosso sistema eleitoral é o principal responsável pelo fracasso das nossas instituições governamentais. Propor mudar o sistema de governo é apenas uma tentativa das corporações e dos partidos de permanecerem no poder. Quem pode se dizer democrata e discutir "semi-parlamentarismo" em um país que já fez dois plebiscitos sobre o assunto e escolheu o presidencialismo? Imaginar que isto seja solução é ignorar a principal lição do Império: “nada se assemelha mais a um saquarema do que um luzia no poder”. Na versão atualizada: não importa quem for eleito, o centrão estará lá. Por isso, a mudança do sistema eleitoral é fundamental. Voto distrital com representação proporcional é a sentença de morte dessa gente. Se um dia chegarmos lá, talvez consigamos instaurar um pilar da democracia: todos são iguais perante a lei (inclusive os membros do Judiciário e do Ministério Público).

Antigamente, eu ria dos retrógrados, aqueles que desejam voltar ao passado. Infelizmente, uma das alas mais radicais do retrocesso está no poder e o resultado é, quase todos concordamos, desastroso. A partidocracia e as corporações que se esbaldam no erário público tentam sobreviver a qualquer preço. Isto nos colocou diante de uma escolha de passados: o passado recente versus o passado distante. Este país desmoralizou o progressismo. Não será nesta eleição que a hora do futuro chegará. Mas o importante é que as instituições continuarão funcionando. 


São  Paulo, 22 de abril de 2022.

Comentários