Seria o "Jornalismo" Esportivo Uma "Carne" Vegetariana?

Há alguns meses, passei a utilizar no meu twitter a expressão "Diante de nossos olhos, o jornalismo morre lentamente". Usei-a para erros de português ou de fato e, quando não, de lógica. Geralmente, emprego a expressão para notícias políticas e econômicas. Mas, nas últimas semanas, vi algumas patacoadas na seção esportiva e alarguei o uso da expressão. Abaixo, seguem dois exemplos.

Peço ao leitor que tenha em mente um ponto decisivo: desconfie do profissional que não sabe usar a principal ferramenta da sua atividade. Jornalista que erra concordância, grafia etc. mostra apenas que está na profissão errada. Não se trata de melhorar a "comunicação" com o suposto público "iletrado". Isso é apenas uma desculpa populista para a própria incompetência. A acusação de elitismo é a defesa do ignorante. Leitores menos cultos merecem melhor tratamento. Eu não consulto um dentista que sabe tanto quanto eu de arcadas dentárias.

Ainda na linha das desculpas cretinas, há um lugar especial para "sou de humanas, não sei matemática". Mas se tirarem um zero à direita do seu salário, certamente o cidadão perceberá. Jornalismo também é contexto e checagem. Se sujeito não checa ou entende o contexto, é apenas um ignorante com acesso a um meio de comunicação. No twitter, alguém criou o "Instituto de Estatísticas Tiradas do C*". Eu não consigo pensar em crítica melhor.

Eu sou velho o bastante para me lembrar que o esporte era quase a seção policial: o lugar de início do repórter inexperiente. Se provasse competência, seria convidado para as seções nobres. Mas os esportes e outras diversões tornaram-se economicamente relevantes, a política é isso que vemos e o jornalismo esportivo subiu de status. Infelizmente, com a importância não veio mais qualidade.

O primeiro texto que chamou-me a atenção era uma defesa da proposta de tornar bienais as Copas do Mundo. O argumento do autor era que a perda de público do esporte, e do evento em particular, seria pela raridade do evento. Se houvesse mais copas, haveria mais cobertura, mais "mídia" e isto despertaria mais atenção, aumentando o público interessado em futebol. Naturalmente, o texto foi divulgado no grupo que detém os direitos exclusivos do evento. Marx dizia que a primeira função do analista é perguntar cui bono (meter um latim sempre impressiona): a quem interessa?

Uma Copa do Mundo bianual interessa à FIFA, aos dirigentes de países periféricos no futebol (possibilidade de viajar mais, talvez vender votos etc.) e aos ditadores que compram o direito de sediar o torneio na esperança de limpar a imagem diante dos outros países. E, claro, a quem detém os direitos de transmissão. Ignorar que a FIFA está em uma queda de braço com a UEFA é ser distraído num grau indigno da profissão de jornalista. O campeonato europeu de seleções está crescendo em importância, audiência e, claro, faturamento. O jeito de evitar isso é dificultar a sua existência. Logo, se for criada uma Copa do Mundo na data dedicada ao Campeonato Europeu, a concorrência será evitada. Que o editor da seção tenha aceitado o argumento do jornalista e deixado publicar essa cantilena, seria caso de demissão por justa causa, fosse isso jornalismo de verdade.

Mas há também um problema lógico. As pessoas prestam cada vez menos atenção no futebol porque têm mais opções de lazer. Como o dia só tem 24 horas, quanto mais diversos forem os interesses, menos tempo será dedicado a cada um em especial. O futebol já não reina como o único esporte ou, mesmo, a única diversão disponível.  Além disso, há a internet e o seu parque de diversão disponível 24 horas, com maior controle do espectador. Oferecer mais do mesmo não mudará isso. Pode até ser que a Copa atraia atenção. Mas, terminada, as atenções naturalmente serão dispersas novamente.

Quando o esporte passou a ser tratado por algumas empresas de comunicação como "diversão", o produto foi mudado de categoria. Deixou de ser esporte no sentido preciso do termo. Não é mais uma competição, uma exibição de capacidade, uma disputa entre clubes etc. para ser apenas mais um produto para distrair a pessoa das vicissitudes do dia a dia. Como se fosse uma novela, uma música, um livro, uma videocassetada etc. E, por favor, poupem-me de "a arte existe porque a vida não basta" (a frase é de Ferreira Gullar, que não merecia isso. Quem usa essa frase como muleta raramente usa outra, mais necessária: "a crase não foi feita para humilhar ninguém"). Para cada livro que é realmente arte, há milhares que são apenas desperdício de papel. Ninguém lê Fernando Pessoa todos os dias, o tempo todo. Nem os acadêmicos supostamente estudiosos do poeta fazem isso (e se os há, merecem tratamento psiquiátrico).

Logo, aumentar a oferta terá o efeito contrário, pois se a demanda é fixa, quanto maior a oferta, menor o preço.

A segunda reportagem era uma entrevista. Um jornalista entrevistava um colega sobre uma reportagem. A despeito do fato de que jornalista entrevistar jornalista é dar mais importância ao colega do que ao fato, vamos lá: o entrevistado estava alarmado pelos resultados dos últimos mundiais de clubes. Mostrava que nos últimos anos os clubes europeus conquistaram mais taças do que os sul-americanos. Segundo o cidadão, essa tendência se manterá por conta das disparidades socioeconômicas entre os países, do fim dos contratos draconianos (lei Bosman), o câmbio etc. Todas as causas seriam exógenas aos clubes de futebol sul-americanos, esses pobres coitados. Faltou apenas um "é o neoliberalismo" para completar a performance. 

Os clubes brasileiros aceitaram que uma rede de televisão se tornasse monopolista das transmissões. Colocaram os jogos em horários inacessíveis para uma massa de trabalhadores e estudantes. Aceitaram a proliferação de torcidas organizadas violentas, que afastam milhares de pessoas dos campos. Em sua maioria, os jornalistas se calaram. Ou se lembram de reclamar apenas quando há uma tragédia. 

Os dirigentes bem intencionados, ainda que amadores, foram substituídos por gente que não consegue explicar a origem do seu patrimônio (é preciso ser profissional para levar a vida como amador). Há "empresários" de jogadores para todos os gostos (e até tentaram fazer um cartel legalizado, criando algum tipo de "certificação"). Regularmente, aparece algum tipo de denúncia sobre a lisura das famosas peneiras. Ou seja, os clubes não estão mais cuidando da formação de mão-de-obra. Não que sejam totalmente culpados. Felizmente, a rede escolar aumentou, há mais profissões e, portanto, não necessariamente o sonho da criança pobre é ser jogador de futebol. Ou seja, a oferta inicial de mão-de-obra também não é a mesma de antanho.

Uma solução seria profissionalizar de vez o futebol (e os demais esportes) em todos os seus aspectos, sobretudo na sua administração. Mas, nesse caso, como os dirigentes "profissionais do amadorismo" sobreviveriam, não é mesmo? A parte tristemente engraçada desta história é haver jornalista contra isso, alegando que seria uma "elitização do futebol". Ora, neste caso os jornalistas também deveriam aceitar receber salários menores, para que as empresas pudessem vender barato as suas notícias e "popularizar" o jornalismo. Neoliberalismo é tudo o que eu não gosto, aprendi no Twitter.

Esse "amadorismo" de fancaria reflete-se, por exemplo, nas camisas dos clubes. Que sentido há em uma camisa ter seis ou sete patrocinadores? Poluição visual é um conceito que qualquer aluno de moda conhece. E as camisas "anuais", que são feitas por designers que ignoram a história e as tradições dos clubes? Como são esses contratos de patrocínio e material esportivo que descaracterizam a imagem do clube? Alguém já viu reportagem sobre isso? A internet está aí para que os mais jovens possam ver como eram as camisas sem patrocínio. Não que este deva ser abolido. Mas deve ser parte de uma estratégia, não de um desespero para obter alguma receita. Qualquer segundanista de marketing sabe disso.

Os horários impeditivos e as torcidas organizadas diminuíram a formação de público, que começa na infância. Além disso, as crianças hoje vivem em prédios, os pais trabalham mais tempo, as famílias são menores etc. Há menos adultos, com menos tempo, para ensinar às crianças a beleza do futebol. A consolidação da democracia, as facilidades de transporte etc. aumentaram as opções de lazer.
Os clubes descuidaram da formação de público ao ignorar todas essas mudanças sócio-culturais. Tudo isso ajuda a eliminar a formação de um público fiel ao esporte em geral e a um clube em específico.

Outro ponto importante é aumento ao acesso ao futebol praticado em qualquer lugar do mundo: há a televisão a cabo, o "streaming" etc. As crianças podem ver jogos bons e times grandes de todos os lugares do mundo. Por menos inato que seja o senso estético, como convencer que o perneta incensado por algum setorista do clube é um craque? É difícil mentir nesse grau. Antigamente, se dizia que "esse aí só usa a perna esquerda para subir no bonde". Não dá para aceitar jogadores que não têm controle de bola mínimo com os dois pés sejam chamados de "craque".  Claro, há as exceções. Mas quantos Maradonas surgiram nos último vinte anos? Lembramos das exceções porque são, ora vejam, exceções. Se jornalistas não descrevem os fatos apenas para não melindrar os torcedores/leitores/espectadores, então, de fato, seu lugar é na coluna de fofocas da seção de diversão. Repita comigo: Relações Públicas não são Jornalismo.

A experiência de jogar futebol e vê-lo no campo também é importante. Quem apenas vê o esporte pela TV se engana com aqueles jogadores que se assemelham a focas amestradas que equilibram bolas com o focinho. Isto gera bons closes de TV, mas são inúteis para o jogo. Basta acompanhar uma transmissão de futebol para ouvir comentaristas embevecidos por esse tipo de cretinice. "Europeu não tem cintura" é frase de jornalista que não tem conhecimento. Logo, quanto mais pessoas deixam de ir ao estádio (e levar crianças consigo), menor será o público no futuro. Logo, não adianta vender a alma para a televisão no presente (mas eu sou economista: raríssimos são os administradores que pensam a longo prazo. E, não, não citarei Keynes: "a longo prazo, todos" etc.).

Por último, mas não menos importante, a oferta de jornalismo mudou e aumentou. A internet tornou possível o surgimento do jornal de um homem só. Isto não significa uma volta aos tempos do "uma ideia na cabeça, uma câmera na mão e uma porcaria de filme". Mas é possível que o jornalismo também esteja se tornando uma profissão liberal. Estão aí os blogs, canais de vídeo etc. para provar. Muitos jornalistas, especialmente os dos grandes veículos, certamente torcerão o nariz para isto. Dirão que esses blogs e canais de vídeo não fazem jornalismo. Mas, pergunto eu, se esses veículos ditos "alternativos" são tão ruins, por que alguns conseguem ter mais audiência e ou importância que alguns "jornalões"? Não vale culpar o público ou a concentração de renda. Talvez o compadrio nas redações e a possibilidade de um consumidor ir à internet e demonstrar algum erro do jornalista em tempo real tenham algo a ver com isso.

Agora, vamos juntar as partes. De um lado, o amadorismo no tratamento de um produto (América do Sul). Do outro, o profissionalismo orientado para o lucro (Europa). Olha, não é que essa gente tem razão? É o neoliberalismo!

Dizem que "bom jornalismo custa caro". Ok, mas produto ruim só vende em liquidação. Esse jornalismo que mostrei acima é ruim e, provavelmente, caro. Precisa ser liquidado.


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