Sem Mim, O Dilúvio: Uma Defesa Do Ensino De História

Abri uma conta no Twitter para fazer um experimento antropológico: como é participar de uma rede social eletrônica? Sim, eu sei, “eletrônica” é um anacronismo. Mas, não: todos nós fazemos parte de redes sociais, exceto, talvez, o eremita empedernido. E mesmo este terá internalizado os valores da sociedade onde foi criado. Você pode sair da sociedade, mas esta não sairá de você (Desculpem-me pela sociologia 101, menos para essa turma do “Mais Mises, Menos Marx”, que precisa ouvir essas verdades). Assim, a mágica da internet é lhe possibilitar frequentar mais redes sociais do que lhe seria possível via os seus contatos no mundo “real”. Eu fiquei curioso sobre Twitter, Facebook etc. após ler o livro de Joseph M. Reagle sobre debates internéticos e disseminação de ódio e ignorância nas redes sociais. Como cientista social, verificar se de fato isto acontece pareceu-me interessante.

O livro de Reagle é um estudo quase antropológico do comportamento das pessoas na internet. Esse autor mostra a evolução de sites com abertura para comentários (vários sobre livros e literatura), blogs e fóruns, passando por comentários em redes sociais. A evolução mostra que quanto maior o número de usuários/frequentadores de um site, maior a chance de haver uma discussão que termine citando Hitler, o nazismo etc.

Tudo isso para lhes contar que acompanhar a Copa do Mundo (de 2018, o ano em que comecei a escrever este ensaio) no Twitter confirmou a minha hipótese de que precisamos melhorar o ensino de História no Brasil. A maioria das pessoas ignora a história do futebol, das Copas, da seleção brasileira, para não falar da História do Brasil ou mesmo mundial. Afinal, croatas são nazistas? A França é a asa negra do Brasil? A confusão é divertida no começo, mas em algum momento bate o desespero. 

Vejam se não estou certo:

Deparei-me com um tweet alegando que a França sempre ganha do Brasil. Sempre? Em 1958, os franceses foram surrados com um 5x2 sem dó, nem piedade. Ganhei a seguinte resposta: Ah, mas não vale, “porque eu não havia nascido”. Como assim, cara pálida? E desde quando o seu nascimento marca o início da História? Até eu, que faço parte de um grupo especialmente convencido (economistas marxistas) não tenho essa pretensão. Mas isto não é nada, se comparado com jornalistas fazendo afirmações simples de verificar em uma pequena visita ao google: “Tite será o primeiro treinador a perder uma Copa e continuar no cargo.” E Cláudio Coutinho, que seguiu no comando da seleção em 1979, apesar do fracasso na Copa da Argentina (1978)?

Quando eu era jovem, dizia-se que alguém tinha “cultura de almanaque” quando sabia um conjunto de fatos, mas não conseguia ligá-los ou dar-lhes sentido. Hoje, não há mais almanaques, mas a Wikipédia está aí, a uma tecla de distância. Não que isto sirva para alguma coisa. Em algum lugar, li que no primeiro boom de usuários da internet, pornografia era o assunto mais procurado. Depois, veio a era das redes sociais, das amizades e, finalmente,  o futuro prenunciaria a busca de aprendizado. Bom, se minha amostra é verdadeira, aparentemente essa era do conhecimento ainda não aconteceu. Parafraseando Lévi-Strauss: a internet foi da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. As pessoas mais jovens parecem tranquilas em pontificar sobre o que ignoram (embora eu precise ressaltar que muitos PhDs o façam também, até de uma maneira estarrecedora para quem vive em uma Universidade – e notem que sou docente da suposta “melhor universidade da América Latina” – risos). O mais incrível, para mim, é ausência de curiosidade em saber mais sobre o que falam, como se a pura experiência pessoal fosse suficiente.  E esta não é e jamais foi. Pode ser narcisismo, provincianismo ou qualquer outro “ismo”, mas a experiência pessoal não basta para lhe dar cultura geral e entendimento do mundo.

Além da questão das falhas de memória, da limitação física e temporal que é a própria vida, temos várias dificuldades cognitivas para compreender o mundo. Mesmo que você seja um poço de inteligência, há sempre uma tendência a acreditar que sua experiência pessoal é universal, que os fatos mais recentes são os mais representativos, que as informações que você sabe são as mais importantes e por aí vai. Quem estuda Psicologia, Administração ou Teoria da Decisão está cansado de saber disso (alguns colegas economistas preferem deliberadamente esquecer isso, mas aí já é outra história). Há até uma literatura de divulgação científica vasta sobre o assunto, mostrando os vieses que temos ao avaliar e decidir sobre alguma coisa.

A atual cultura de almanaque é o oposto da passada: as pessoas ligam os assuntos sem conhecê-los. Talvez seja isso a que se referem os críticos da educação moderna, quando condenam essa mania de formar “cidadãos críticos” desde a mais tenra idade e sem fornecer-lhes os fatos para criticarem. É como se o ensino de História atual tenha sido tomado por um protomarxismo mecânico e ignorante, o oposto de Marx, aliás, que tinha uma cultura enciclopédica (wikipédica, na linguagem atual), graças à Biblioteca de Londres e ao dinheiro de Engels. Minha experiência com professores “críticos” é que os alunos devem decorar a crítica do mestre e nunca pensar por si mesmos. Afinal, se os alunos pensarem, vários desses docentes podem se ver em palpos de aranha.

Claro que isto só não explica tudo. “Para todo problema complexo, há uma solução simples e… errada!” é uma frase que deveria vir impressa (digo, surgir em pop up e em letras garrafais) em todos os fóruns e redes sociais na internet. Evitaria muito debate inútil e estéril. Além disso, estamos no Brasil: um lugar onde um papel dizendo que você sabe algo é mais importante do que o conhecimento. Daí que muitos pais hoje não se preocupam com a educação dos filhos, porque querem apenas o papel, e por aí vai. Isto pode servir de desculpa aos estudantes, nunca aos profissionais. Um jornalista esportivo deve saber as regras e a história do seu esporte. Para estes, não há perdão.

Hoje o conhecimento está disponível, bastando acesso à internet, curiosidade e método. O acesso à rede mundial aos poucos  se massifica. A curiosidade é morta diariamente em famílias & escolas, além de refletir idiossincrasias pessoais, tais como capacidade cognitiva, preferências ideológicas etc. Mas, apesar disso, ainda há gentes curiosas. Sempre haverá. Destarte, a falta está no método: como buscar as informações? Antigamente, o caminho era ir à biblioteca e procurar livros que estivessem na mesma seção. O truque seria saber as palavras-chave e observar livros da seção indicada. Dava trabalho, perdia-se tempo com textos ruins, mas costumava funcionar. O problema era encontrar boas bibliotecas. Agora, é internet e google na veia. Nicholas Carr é um crítico desse método. Alega que conhecer demanda reflexão e esta exige tempo. Ler várias páginas em meio físico significa ficar em algum lugar e concentrar-se na leitura. Quase o oposto das atuais googladas (que o leitor me perdoe pelo anglicismo cacofônico). Ao consultar uma sequência de hiperlinks, o leitor ganharia em velocidade e amplitude, mas perderia em profundidade. E a profundidade é fundamental para a crítica e para fazer as ligações entre assuntos, autores e épocas. Daí Carr batizar esta atual geração de leitores da internet de “superficial”.

Eu não tenho o pessimismo de Carr, até por dever de ofício. Ao contrário do que se imagina, poucas profissões têm tanta fé na humanidade como a de economista, independentemente da sua vertente ou preferência ideológica. Quando tudo o mais falhar, os economistas acreditamos que a humanidade desenvolverá teorias & tecnologias para resolver os problemas. A má fama que nos acompanha é a consciência de que há um custo para resolver problemas. Quer dizer, a solução tem preço, com o quê a maioria dos economistas concordamos. Daí a famosa frase de Milton Friedman: “não há almoço grátis”.  Quem pagaria a solução envolve escolhas morais & políticas. Desconfie sempre do economista que alega poder escolher os pagadores apenas por “meios técnicos”. O pior alienado é o que não quer ver.

Além disso, e este ponto é fundamental, desde Robert Merton (o sociólogo pai do nobelizado economista) sabemos que o simples fato de fazer a profecia afeta o futuro, porque providências podem ser tomadas para evitar o resultado previsto (no caso de epidemias, p.ex.) ou porque geram forças sociais a favor e contra o resultado previsto (a ascensão do comunismo, o fim da democracia etc.). Daí o futuro ser incerto (a maioria das previsões usa modelos que assumem o futuro como algo próximo da média do que teria sido o passado). Portanto, não sabemos se o futuro será de iliteratos.

O que sabemos, se a minha amostra das redes sociais eletrônicas é relevante, é que as pessoas cada vez mais tomam-se como medida do mundo. É um déjà vu de Tucídides, por assim dizer. Em “História da Guerra do Peloponeso”, o historiador grego reproduz um discurso fúnebre de Péricles, no qual este lembra que os homens tendem a se tomar como medida da humanidade e teriam dificuldade em acreditar que aqueles mortos houvessem apresentado tanto heroísmo nas batalhas. Tire essas batalhas, o heroísmo e tudo o mais e deixe apenas fatos e conhecimento. Quem se toma como medida do mundo não consegue imaginar que alguém saiba mais sobre um assunto ou que conheça fatos de outros séculos apenas porque não viveu aquilo.

Como se isto não bastasse, há ainda a questão do tempo. Se a medida de tudo é a nossa vida, é difícil entender o que são cem ou mil anos. Tudo parece igualmente distante. Se não entendemos a passagem do tempo, somos presas de um imediatismo infantil: tudo é para agora, não podemos esperar. Daí a dificuldade de se desconectar, como é possível ver no trânsito, nos restaurantes e em tantos lugares: pessoas tentando fazer várias atividades ao mesmo tempo e ignorando os seres humanos que estão ao seu lado. Para essa gente, a vitória do Brasil sobre a França em 1958 é quase como se houvesse acontecido em um campeonato disputado por Neanderthais.

E aqui chegamos à verdadeira tragédia: mais do que a ausência de conhecimento, é a ignorância narcísica que destrói a humanidade que há em nós. Perdoem-me o chavão, mas ao conhecermos História somos transportados a outros mundos. Aprendemos que muitas características que julgamos tão pessoais, são traços de várias figuras históricas. Aprendemos sobre outras culturas, sobre geografia e tudo o mais. Disto decorre que não precisaremos ser mãe e mulher para compreender a dor de uma mãe que enterra um filho. É desnecessário ser gay ou trans ou seja lá o que for para entender o preconceito que esses cidadãos sofrem na vida cotidiana. Mesmo sem ter servido na II Guerra, podemos compreender o horror do nazismo e do Holocausto. É isto que nos torna humanos: a empatia com a dor alheia e o respeito pela experiência de outrem. A combinação de História e Literatura (eu ainda uso maiúsculas para me referir aos clássicos), nos ensina Humanidade no melhor sentido da expressão (não confundir com essa farsa chamada de “humanidades” ensinada hoje em muitos lugares, a pretexto de formar cidadãos “críticos” blablablá). Nada do que é humano me é estranho, disse Terêncio, um romano (née cartaginês) supimpa e metido a sebo (à época de Terêncio, todo romano era metido a sebo).

Essas pessoas imediatistas terminam por ser uma paródia de Luís XV de França, autor da famosa frase: “depois de mim, o Dilúvio!”. Pouco se lhe importava como seria a França após a sua morte. Apenas que o mote desses twitteiros seria um horrível “sem mim, o Dilúvio!”: o passado não existiu e o futuro não precisa ser construído. Essa gente me faz desconfiar que todos nascemos Homo Sapiens e a maioria tentamos nos tornar Homo Sapiens Sapiens, afinal. Quanto ao resto, o Dilúvio apagará.

São Paulo, 17 de fevereiro de 2022.

A quem possa interessar:

BEARD, Mary (2015): SPQR: Uma História da Roma Antiga. São Paulo: Planeta, 2017.

CARR, Nicholas (2011): A Geração Superficial. Rio de Janeiro: Agir, 2011.

DOBELLI, Rolf (2011): A arte de pensar claramente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013

MERTON, Robert (1968): Social Theory and Social Structure. New York: The Free Press, 1968.

MYRDAL, Gunnar (1932): Aspectos Políticos Da Teoria Econômica. São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Col. “Os Economistas”).

REAGLE, Joseph M. (2015): Reading the Comments: Likers, Haters, and Manipulators at the Bottom of the Web. Boston: MIT Press, 2015.

TETLOCK, Philip E. & GARDNER, Dan (2105): Superprevisões: A arte e a ciência de antecipar o futuro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

TUCÍDIDES(1986): História Da Guerra Do Peloponeso. Brasília: Ed. UnB, 1986. [Excepcionalmente, estou usando a data da minha edição. Tucídides morreu c. 400 A.C., deixando a obra inacabada]

[Uma nota final: este ensaio foi escrito em fevereiro de 2020 e revisto em fevereiro de 2022. Daí a referências a eventos pré-diluvianos, digo, pré-pandemia. Eu sou mais lento para terminar um texto que Dorival Caymmi para compor canções. Infelizmente, sem o mesmo talento que o genial baiano.]



São Paulo, 17 de fevereiro de 2022.


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