Na Velha Economia Da Unicamp

    Eu sou do tempo em que os parentes morriam. A afirmação é estranha, reconheço. Somos todos mortais e o Covid está aí que não me deixa mentir. A despeito dessa tragédia que nos abate (com a vil concorrência do governo federal. Essa gente viverá na infâmia da história), a morte contemporânea tornou-se um fenômeno estranho. As famílias são cada vez menores. Ao menos nos grandes centros, já não há aquela multidão de primos de segundo e terceiro (e quarto! – sic) graus. Já não há aquelas tias-avós que você não lembra o nome, pois quando crianças os velhos nos parecem todos iguais. Já não há um daqueles agregados da família, que sabe-Deus-porquê foram parar na cidade e sua família o adotou como se fosse um primo ou tio distante. Hoje somos um casal, dois filhos e nem mesmo um bom dia polido ao vizinho no elevador. Então a morte nos é estranha, porque rara. Mas eu sou da velha guarda e tenho enorme milhagem de velórios, carregamento de caixão e tudo o mais. Até fui expulso do velório do meu avô, vejam só (mas essa história fica para outro dia). A maior parte da família já é memória e eu, se cumprir o destino da vida média dos meus familiares, estou bem perto do Cabo da Boa Esperança. Genética não é destino, mas parece.


    E por que essa longa introdução, que nada liga à Unicamp, sempre tão jovial e animada? Sempre que torno à alma mater, sinto aquela alegria juvenil, a excitação de ser aluno de Economia, mesmo que as aulas ainda fossem no IFCH. Nem sempre foi assim. Eu tive um episódio de depressão terrível durante a graduação, precisei de assistência médica e durante anos pensar na Unicamp desatava aquela sensação de nunca-mais-quero-passar-por-isso. Se estou vivo é porque a Medicina é ciência, meus pais eram esclarecidos e o calor das amizades de república me suportaram. Triste de quem nunca precisou de amigos (ou de alopatia).


    Então precisei envelhecer e fazer "carreira acadêmica" (um dia explicarei as aspas) na suposta “melhor Universidade da América Latina” (risos) para fazer as pazes com a Unicamp. O tempo apaga as memórias ruins e ajuda a idealizar o passado. Eu conheço o truque, mas sou humano. Mas a memória acaba, como o amor acaba e as velhas universidades, também. Não, eu não sou desses velhos que dizem "no meu tempo era melhor". Velho que diz isso sente saudades de si mesmo, de sua juventude. Felizmente, a depressão severa me tornou imune ao saudosismo juvenil. Quem desejaria passar por aquilo novamente? Então o se segue é o relato da Economia da Unicamp que já morreu.


    Na Velha Economia da Unicamp, líamos Adam Smith, David Ricardo e, sim senhor!, Stanley Jevons e Vilfredo Pareto. E, claro, Alfred Marshall. Até para entender a genialidade de Keynes. Os professores insistiam com Kalecki, mas eu ainda me lembro de passar horas conversando com os colegas sobre A Teoria Geral. Nunca entendi porque dizem que esse livro é “difícil” (mentira, eu sei, mas isso fica para outro dia). Depois, na pós-graduação, li muito Keynes no original e sempre me maravilhei com o inglês bem escrito (não por acaso, Keynes era amigo de tantos escritores e outros artistas). Kalecki era mais seco e, talvez, mais preciso. Mas Keynes é o músico clássico que descambou para o jazz: conhece seu ofício, sabe as partituras, mas adora um floreio. Podemos vê-lo esboçar um sorriso com a reação da platéia e dar uma piscadela para o ouvinte mais atento, que entendeu o improviso.


    Na Velha Economia da Unicamp estudávamos os “neoclássicos” porque era preciso dominar o assunto. A crítica deveria ser contundente, mas honesta. E quem nunca leu, não pode criticar (isto foi antes da internet e dos intelectuais de twitter). Ainda hoje me lembro das noites com Valor e Capital de Hicks. Posso garantir que há várias maneiras melhores de dormir tarde.

    Sendo eu filho de meu pai (um sociólogo uspiano marxista da boa e velha cepa), li por conta própria Veblen, Myrdal e Galbraith. Passei os olhos por Mitchell, Sweezy e Robinson. Além de Friedman, claro. Era como ver escondido algum filme erótico com carteira de estudante falsificada (não, eu não sinto saudades da minha adolescência querida, que os anos já não trazem mais, Casimiro de Abreu que me desculpe). 


    Em algumas disciplinas perdidas, tivemos Schumpeter e Leontief. Um economista da Unicamp lia os clássicos, os antigos e os novos. Ah, e também houve Sraffa, que me deu um trabalho danado (tanto o livro quanto o seu famoso artigo). Durante algum tempo, imaginei que a tradução do artigo era sofrível (que saiu como um livrinho de capa preta pela Hucitec). Anos depois, quando li o original em inglês, logo vi como o tradutor brasileiro sofreu.  É um inglês de italiano (“Tu Vuò Fa' L'Americano”), Sraffa que me desculpe. Mas um dos meus gatos se chama Piero Sraffa, então acho que estou perdoado (o gato mais velho, Karl Marx, às vezes tocaia o Sraffa. Dizem que dois heterodoxos não se bicam).


    Na Velha Economia da Unicamp, não havia o politicamente correto. Vi um professor perguntar a um aluno estrangeiro: “Você passou no vestibular? Não, né? Você está aqui por convênio, fala a verdade.” Não que isso tenha me abalado. Afinal, na primeira aula de Introdução à Economia, o professor entrou com um livro debaixo do braço, abriu-o teatralmente sobre a mesa e leu: “Marx citando Aristóteles disse que o homem ‘é um animal social’. O que Marx quis dizer com isso? Você aí, me diga!”(*) E apontou para o colega que estava ao meu lado esquerdo. Sabe aquele alívio de graças-a-Deus-não-fui-eu-o-escolhido? Eu  ainda me envergonho, mas foi isso que senti naquele dia, já lá se vão trinta e cinco anos. O colega balbuciou algumas palavras desconexas e foi interrompido brutalmente pelo professor (?): “Isso não é resposta aceitável de um aluno de Economia da Unicamp. Aqui você precisa estudar, entendeu?”. O silêncio era sepulcral. Felizmente, na semana seguinte fui transferido para a outra turma dessa disciplina (nem me lembro o motivo). Na Velha Economia da Unicamp também havia professores medíocres.


    O método pedagógico usado era o mais velho do mundo, mas de eficiência comprovada: o medo, com pitadas de desprezo (e, talvez, psicopatia). Você sabia as suas notas pelo mural, ao lado da secretaria de graduação. Geralmente, os professores não estavam no Instituto quando as notas eram afixadas. Você só podia reclamar para o Bispo. Alguns colegas mais despachados (ou irritados) procuravam a secretaria e perguntavam pelo telefone do docente. Claro que nunca o conseguiam. Além de, se insistissem muito, serem admoestados pela secretária de plantão e, eventualmente, convidados a conversar com o Diretor da Unidade. Um sujeito corpulento que berrava com alunos e professores iniciantes e miava com os poderosos. Civilidade também era ensinada na Velha Economia da Unicamp, mas nem sempre.

    Na Velha Economia da Unicamp havia um corredor com várias placas e homenagem a docentes. A autocongratulação sempre foi um esporte muito praticado na Academia, hoje sei. Mas, naquele tempo, ainda havia um certo pundonor. Todas as placas de homenagem aos amigos ficavam em uma parede. Na parede oposta, sozinha, reinava a homenagem a Celso Furtado, com os dizeres “Ao cidadão exemplar e mestre de todos nós”. Ser um cidadão exemplar e um bom mestre tornou-se um objetivo de vida. A Velha Economia da Unicamp sabia inspirar. (Trinta anos depois, a placa de Furtado ganhou companhia na parede. A fama inflacionista da Economia da Unicamp também se aplica ao aumento descontrolado de heróis. Com isso, a utilidade da marginal da homenagem diminui exponencialmente. Celso Furtado não merecia isso. Enfim, em um país que pessoas ainda homenageiam Bob Fields, o que dizer?).

    Na Velha Economia da Unicamp, se você comentasse alguma coisa sobre Kautsky ou Bernstein, jovens petistas lhe xingavam (sic) de “social-democrata”. Eles eram moralmente superiores, vocês sabem (não era preciso ser brilhante para saber que isso degeneraria em uma mistura de religião e grupo mafioso). Mas eu reagia à altura: achava essa gente fascista, com suas camisetas da mesma cor, repetição acrítica de palavras de ordem, adoração ao líder e aceitação da violência para calar qualquer voz discordante. Ainda acho essa gente fascista (no bom e velho sentido do termo. Abaixo do Equador a terminologia muda de lado, e o que era ruim e de direita torna-se bom e de “esquerda”). Eu já tivera a experiência de ser chamado de “comunista” em uma escola católica. E depois seria chamado de “neoliberal” por uma aduspiana medíocre. São as agruras por ter sido criado por um uspiano marxista da boa cepa. A vida intelectual honesta é um lugar onde os fracos não tem vez, fosse na Velha Economia da Unicamp ou seja na suposta “melhor Universidade da América Latina” (risos). Ao menos, na Velha Economia da Unicamp, o Marx economista era lido.

    Na Velha Economia da Unicamp, não havia computadores. Aliás, no glorioso tempo de Sarney havia as leis de informática, de substituição de importação, de controle do câmbio (tive de explicar a um aluno holandês em intercâmbio que câmbio paralelo era ilegal, mas era anunciado no “Jornal Nacional”. Portanto, ele não precisaria de toda a burocracia do câmbio oficial. Jeitinho e lei-que-não-pega são conceitos difíceis de explicar, quando o seu inglês é sraffiano). Era o paraíso da estupidez econômica, mas ainda isso ainda era discutido a sério, juro. Então aprendíamos Estatística no braço e no cérebro. Ainda me lembro de estar em uma sala de estudos da biblioteca do IFCH, com mais três ou quatro colegas, calculando inversão de matriz e mais duas ou três atividades para um trabalho de econometria. Não sabíamos, mas aquilo era puro processamento em paralelo. Na Velha Economia da Unicamp, a união fazia a econometria.

    O debate na Velha Economia da Unicamp era franco e direto. Valia tudo, menos dedo no olho (ou talvez valesse. Meu falecido pai dizia que seu orientador, um catedrático de Sociologia, chegou a pegar um docente pelos colarinhos. Se era assim na vetusta “melhor Universidade da América Latina" – sorriso maroto – por que seria diferente na Velha Economia da Unicamp?). Certa vez, no auditório recém inaugurado do IE/Unicamp, presenciei aquela professora portuguesa mal educada que falava pelos cotovelos ser silenciada em um debate. “Você chega atrasada, não sabe o que foi dito, interrompe os outros e começa a reclamar”. Os alunos começamos a rir. A mulher calou-se e, pouco depois, abandonou o auditório, com o semblante vermelho de raiva (foi sensacional, Prof. Sérgio Prado!). Um professor renomado ainda a chamou, mas outro retrucou: “deixe ela ir!” (o “ela voltará” ficou implícito. Ela voltou, calada e bem educada).
    

    Na Velha Economia da Unicamp, os alunos aprendiam com o comportamento dos professores. Se é para ser duro e bater de frente, fizemos o primeiro protesto estudantil da história do prédio do Instituto de Economia da Unicamp. Vários docentes não chegavam no horário das aulas e não marcavam nenhum horário para tirar dúvidas. Alguns simplesmente faltavam a algumas aulas, sem reposição ou explicação. Alunos de várias turmas reuniram-se e decidiram protestar. Eu estava no grupo. Seria um protesto por mais e melhores aulas. Quem diria, hem? Mas como juntar gente para um protesto desse? Eu não sei de quem foi a ideia, mas a apoiei tão logo soube. O Caeco (Centro Acadêmico da Economia) tinha dinheiro em caixa (fiz parte da gestão que saneou as contas. É o eterno ciclo do movimento estudantil). Então marcamos o protesto antes de uma festa com chope de graça.  Quem estivesse no comício, ganharia chope de graça. Pessoas respondem a incentivos, isto é Economia 101 (não é só isso, eu sei). O pessoal mais “idelogizado” (sejamos francos: estudantes profissionais ligados a partidos políticos) foi contra, porque deveríamos fazer um movimento para conscientizar blablablá. Fizemos o protesto no vão interno do prédio. Naquela época, a metade da frente (voltada para o Ciclo Básico) era a parte administrativa e dos docentes. O outro lado era composto por salas de aula. Não existiam outros prédios atrás (onde atualmente ficam as salas de aula). Distribuímos narizes de palhaço a todos (acho que guardei o meu nariz por uns bons vinte anos). Fixamos um cartaz enorme, cobrindo a parede ao lado das escadarias, com um palhaço desenhado e “Chega de Palhaçada!” escrito em letras garrafais. Duvido que aquele vão tenha ficado com tantas pessoas juntas novamente (mas pode ser pretensão de velho do tipo "no meu tempo era melhor"). Veio gente de toda a Unicamp, é claro. Chope de graça faz milagres, os ideólogos que me perdoem. Fizemos alguns discursos no palco montado no lado onde fica a Cantina. Foi divertido assistir a vários professores fechando suas salas e saindo rapidamente o IE (talvez fugir seja um verbo mais preciso, enfim, sejamos polidos). Eu fiz um dos discursos. Ah, e também testei o microfone – naquela época, ficar dizendo “sssssexxxxxo” (assim, com muito silvado) no microfone era chocante. Consegui meus 15 segundos de fama. No dia seguinte, o Diretor contatou todos os representantes das turmas para uma "conversa". Vários professores começaram a chegar no horário e, claro, as provas de final de semestre foram difíceis. Mas valeu a pena. Ah, alguns colegas e eu tivemos de ajudar as faxineiras a limpar as paredes. Mas acho que não éramos bons nisso, pois elas nos dispensaram. Hoje, se punissem um aluno dessa forma, a ouvidoria seria contatada, sindicâncias seriam abertas blablablá. Mas na Velha Economia da Unicamp, a maioria dos alunos sabíamos que atos têm consequências e estávamos dispostos a aguentar o tranco. Ninguém reclamou. Economista de verdade sabe se fazer respeitar.

    A Velha Economia da Unicamp é isso para mim. Já foi outra: no dia em que me formei (ou quase, mas essa é outra história, porque na secretaria me disseram que eu estava formado. Só que não), fui até a sala do meu orientador de TCC (eu sou da primeira turma obrigada a essa estupidez) para me despedir e fiz um longo discurso contra a vida acadêmica (bom, nisso eu não envelheci) e jurei que jamais, ja-mais-nunquinha, colocaria novamente os pés em uma escola de economia (assim mesmo, com e minúsculo). O professor ouviu-me calmamente e retrucou: “em menos de dez anos, você estará cursando mestrado em um grande centro”. Tentei revidar, mas ele me interrompeu: “eu já lhe ouvi e respondi. Se não tem nada de novo para dizer, parabéns, você está formado.” E virou a cadeira e tornou a ler um livro. É estranho, mas nós nos dávamos muito bem e isso era normal. Ainda hoje me lembro com carinho do meu orientador de TCC: afinal, professor não é pai, não é amigo, não é namorado. É professor. Docente que confunde os papéis está fazendo um desserviço aos alunos (aliás, Max Weber, que era economista de formação, está comigo nessa).

    Oito anos depois de formado, eu já havia escrito para jornais locais, gerenciado carteira de ações e trabalhado em agência de publicidade e, claro, passado um tempo desempregado (valeu, Collor!). Foi quando decidi  cursar o mestrado no Depto. de Administração da FEA/USP. Um marxista estudando marketing! E claro que a primeira parte da minha dissertação é uma explicação detalhada da teoria do consumidor em economia. Foi divertido ouvir da banca (um professor da Economia) que aprendeu algo novo com o meu trabalho, apesar de ser um mestrado e eu ser da Unicamp. Interessante, na Velha Economia da USP os professores também não apalpam. Mas tudo bem: chumbo trocado não dói.                              

    Mas a Velha Economia da Unicamp só sentou praça no meu coração, mesmo, quando eu me tornei professor da suposta “melhor Universidade da América Latina” (risos com lágrimas nos olhos). Porque, mais de uma vez, durante as aulas, lembrei-me da aula exata e do professor que me ensinou aquele tópico. Quem nunca ensinou, não sabe como é interessante: você está falando uma coisa, pensando o que falará no próximo instante, está se perguntando “por que esse aluno tatuou um Pequeno Príncipe no braço?” e, de repente, pimba!, surge o Prof. Mariano naquelas salas enormes do IFCH, explicando exatamente o que Keynes realmente quis dizer (os pós-keynesianos estavam em ascensão por aqueles dias). E você se pega sorrindo e repetindo as palavras do querido professor. E você finalmente percebe que aquilo tudo tinha um método. É o momento do “ahá!, então é isso?”, a epifania que todo aluno de Economia tem entre o terceiro e o quarto anos, quando todas aquelas disciplinas desconexas se encaixam e você percebe que, queira ou não, a Velha Economia da Unicamp lhe formou economista. Para os não-economistas: é o momento em que Dory se lembra de tudo em “Procurando Nemo”.

    Eu me pergunto se esta Velha Economia da Unicamp estará comigo no meu último suspiro, quando direi: “mas afinal, o que Marx quis dizer quando…” Tiiiiiiiii, o aparelho da UTI dirá que este velho marqueteiro marxista foi desta para melhor. Melhor? Economistas não vão para o Céu, como todos sabemos.

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 (*) O texto citado é “Para Uma Crítica de Economia Política”, de Karl Marx. É a primeira edição da coleção “Os Economistas” (aquela de capa dura). Está à p.4: “O homem é no sentido mais literal, um zoon politikond [aqui está famosa nota de rodapé. Marx está se referindo a De Republica, de Aristóteles], não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade”. Praticamente toda a minha carreira acadêmica é voltada para compreender a influência interpessoal no consumo, como dizemos modernamente. Marketing aceita isto como fato da vida. Em Economia, os colegas da USP que me desculpem, isso é mais complicado. E não, não é externalidade. Enfim, é sempre bacana saber que podemos citar um grego clássico como o começo de tudo. E aqui tive mais uma epifania: porque foi naquela tarde de março de 1985 que tudo começou. Até um professor cretino pode lhe ajudar, se você tiver sorte.


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